17 de Fevereiro de 1573 Diogo Moreira

acreditava que o cheiro ali sentido se assemelhava às entranhas do inferno. Os corpos de
negros amontoavam-se como ramos de palmeira se amontoam numa carroça, ao mesmo
tempo que bebés choravam agarrados aos seios das mães e homens se esmurravam por um
pedaço de pão. Era uma viagem de não retorno, para todos eles, todos o sabiam, mas nenhum
jamais o afirmaria. Poucos sabiam o que os esperavam, apesar de todos terem as suas
suspeitas, mas Komani era uma das poucas exceções.
Há cerca de dois meses tinha sido capturado durante um confronto entre a sua tribo e um
grupo de homens brancos. Quase todos os seus companheiros tinham sido brutalmente
executados após a batalha, apenas Komani e os mais corpulentos dos seus homens foram
poupados. Sabia que não fora um ato de altruísmo misericordioso, restava-lhes uma vida de
serviço forçado e condições de vida precárias. Soubera das intenções dos europeus, quando
um dos seus companheiros dias antes lhe dissera que na aldeia vizinha tinham capturado um
branco que dissera o que viera fazer a Africa: capturar escravos.
Passados dois meses ali se encontrava, no porão de uma nau provavelmente portuguesa, que
mais se assemelhava a uma grande cabana cheia de carne em decomposição. Vários
companheiros seus tentaram suicidar-se, num ato de orgulho e de desespero, mas todos
foram apanhados pelos brancos que os espancaram. Constantemente se perguntava porque é
que fora ali parar, que mal fizera aos olhos dos deuses que justificasse tal destino para si?
Nunca conseguira encontrar resposta, não havia forma de entender como é suposto um ser
humano lidar com circunstâncias como aquelas.
Durante estes meses no porão do navio, refletiu sobre aquilo que via à sua volta. Procurou
compreender o que leva um homem a fazer aquilo a outro e o que é que levava Komani e os
restantes africanos que iam consigo a serem tratados como meras mercadorias. Sabia que a
culpa não era uma entidade que pudesse ser categoricamente atribuída a alguém, mas era
difícil não ter vontade de amaldiçoar todos os europeus. Mas assim não seria melhor do que
eles, devia continuar a manter-se sereno.
Conseguira perceber que no dia seguinte ou no outro a seguir iam chegar a Lisboa. Komani
tinha consciência do que o esperava: um mercado de escravos onde iria ser negociado como
mera mercadoria. Esperava-o uma vida de servitude, sem qualquer horizonte de melhoria da
sua condição. Apesar disso o que o mais o assustava não era o trabalho a que ia ser sujeito,
mas sim o facto de ir deixar de ser, para todo o sempre, dono de si mesmo. A liberdade para
ele não ia passar a ser mais do que uma bela palavra com agoiros nostálgicos e
contemplativos.

A história de Komani é ficcional, o problema é que muitas não foram.