Uma lança em África Catarina Letria

Uma lança em África

Não tive nenhum avô ou tio ou primo na Guerra Colonial. Ninguém da minha família voltou retornado. A Guerra passou uma tangente aos homens da minha família. Só um esteve na Índia, foi depois para Angola, levou consigo o filho nascido em Macau. Fruto do império, do Minho a Timor, esse que se desmoronou pela guerra.

Na escola, entre amigos, eu era quase sempre a exceção, a que não tinha tido um avô em África. Nem um tio? – perguntavam. Estranhavam. Era como se estivesse fora da História, como se não partilhasse essa herança comum aos da minha idade, a de terem tido avós, pais, primos nascidos nas ex-colónias, avôs, tios, primos a combater. Não cresci a ouvir histórias da Guerra.

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Paris, 2017. Sozinha no meu quarto, numa noite de Erasmus em que me sinto estrangeira, quero saber mais do sítio de onde venho. Estudante de História, sempre essa necessidade de saber como eram as coisas antes de serem como são, e um certo voyeurismo sobre o passado à mistura, não esquecer. Descubro o arquivo online da RTP. Procuro saber que país era esse de onde saíram os pais daqueles que vejo no meu prédio, a concièrge de quem nunca soube o nome, o Alexandre das reparações, os apelidos portugueses dos meus colegas de faculdade, Mendes, Alves. Afinal os clichés são reais.

Entro no site, mergulho e revolvo o Portugal dos anos sessenta deixado pelos que foram encher os bidonvilles dos subúrbios da cidade em que estou. Quando digo o meu nome português na faculdade talvez me associem a esse mundo, ou talvez Lisboa cidade cool com os seus airbnb’s tenha chegado para salvar a imagem de um país. Resolvo digitar por acaso o nome de um dos meus avôs – Joaquim Letria. Talvez encontre aquilo que já vi e de que oiço falar – debate Cunhal-Soares, eleições para a Constituinte de 75. Sim, estão aqui. Mas há também outros dois vídeos, «Moçambique, uma lança em África». Nunca os vi, mas reconheço Samora Machel na imagem parada. Clico no vídeo.

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Estúdios da RTP, 25 de junho de 1975, «dia grande da independência de Moçambique», diz o repórter, anunciando a reportagem que se seguirá, e que contém «a primeira entrevista que Samora Machel concedeu a um jornalista português». Esse jornalista é o meu avô, descubro. Imagens de Lourenço Marques, arquitetura dos anos cinquenta, crianças e mulheres que fixam a câmara de olhar acutilante, cânticos de que só consigo perceber poucas palavras, luta, dirigentes, liberdade. Sente-se o calor. Avião da FRELIMO, mulheres guerrilheiras. Comício em Muenda, maio de 75. Comício em Cabo Delgado, mulheres de capulana em carrinhas de caixa aberta. Entrevista a Joaquim Chissano, de novo o meu avô, desta vez de camisa às riscas.

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Paro e penso. Estou em Paris – 2017 – e vejo um vídeo de Moçambique – 1975 – que passou em Portugal no dia da independência. O ex-colonizador a assistir à festa do ex-colonizado no dia em que o prefixo – ex – foi usado pela primeira vez. O que pensavam as pessoas nos sofás das suas casas, a assistir à derrocada de quase quinhentos anos de colonização portuguesa? Portugal a ver chegar a democracia e a ter de perguntar quem é afinal?, sem as suas dependências transoceânicas. Províncias ultramarinas, melhor dito, nome usado para mascarar a vergonha de um país que teimou em manter colónias mesmo quando as independências já tinham varrido África. África, esse continente cujas fronteiras foram desenhadas a régua e esquadro num salão bem longe lá na Europa, no século XIX, por uns homens de casaco que nunca devem lá ter posto os pés.

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Clico na segunda parte do vídeo. A meio, a tal entrevista que Samora deu ao meu avô. Estão os dois no meio do mato, um de camisa branca, o outro de uniforme militar, as sombras das árvores refletidas na cara. «Durante 500 anos, as relações entre Portugal e Moçambique eram relações de colonizador e colonizado. E como Portugal é um país europeu, e Moçambique é um país africano, infelizmente facilmente pode-se confundir o colonialismo com a cor. E nós infelizmente fomos colonizados por um país europeu de cor branca, e para nós, de pele negra, é como se não pudesse existir um outro tipo de colonialismo. O colonialismo podia ser um colonialismo negro. Queremos eliminar a confusão sobre o colonialismo, entre o colonialismo e o povo. Nós temos relações desde o início com o povo português, mas essas relações estavam bloqueadas pelo colonialismo. Nós queremos estabelecer um novo tipo de relações com Portugal, relações essas exemplares para o mundo». Será que os dois tinham noção da importância histórica do momento? Depois de uma década de luta armada, um país chamado Moçambique emerge de um país em miniatura que se crê gigante e de repente se vê confinado à sua pequenez europeia.

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Lisboa, 2019. Volto a pensar nos vídeos que vi quando estava em Paris e que não consegui contextualizar, talvez obsessão de estudante de História. Pesquiso. Percebo que apanham a «viagem triunfal» em que Samora Machel atravessou o país de norte a sul, de Rovuma a Maputo, e se mostrou às populações, entre maio e junho de 1975, durante o governo de transição que se estenderia do Acordo de Lusaka até à independência. A escola não ensina nada disto, e isto é tão recente. Deduzo portanto que o meu avô acompanhou a tal viagem enquanto repórter da RTP. Decido falar com ele, sair destas suposições. Diz-me que na altura os jornalistas tinham mais autonomia para decidir o que faziam, que esteve dias à espera de Samora, que o seguiram a ele e aos que o acompanhavam durante um mês, a pé, de helicóptero, que dormiam em palhotas e acampamentos. Que em certas povoações as crianças lhes vinham tocar, porque nunca tinham visto um branco e queriam ver se eram feitos do mesmo. Que em certos sítios as pessoas não sabiam o que era uma escada. A reportagem foi montada em Lisboa, exibida poucos dias depois do fim da viagem.

Nunca tinha ouvido esta história do meu avô, nem conhecia esta parte da História. Descubro o meu avô e em simultâneo o que ignoro dele. Descubro parte da história de África e o que ignoro dela.