O Soldado e os Soldados Guilherme F. Alcobia
Pareceu-lhe ouvir o som da água. Podia ser uma cascata. Podia ser um lago. Mas o soldado ainda tinha esperança que fosse um rio. Um rio que lhe trouxesse o que ele desejava e o levasse para onde queria ir. Tentou apressar o passo, mas conteve-se – ao fim de dois dias a rumar, a andar envolvido por um espaço que não era a sua casa, a deambular por um solo que não era o seu, o soldado reprimiu a sua esperança: não havia de ser um rio.
Faustino, Kibiriti e Modesta entraram na sala da administração. A rugosidade das paredes amareladas confundia-se com a pele do administrador. Numa repressão de gestos indignados Modesta tentou expor o que os levava ali. O trabalho nos campos de algodão estava a desgastar a população de Mueda; só na semana passada seis mulheres tiveram de ser levadas à enfermaria após terem sido descobertas caídas sobre o campo.
O som tornava-se agora mais forte. O soldado sentiu uma força crescer-lhe nas entranhas, reparou no vigor que as suas pernas tomavam, quase desligadas da sua vontade. A velocidade e potência daquele som líquido lembravam-no das gaivotas em Belém e por uns segundos sentiu que ali, naquela terra primitiva e brava, havia pedaços da sua terra. O Rovuma apareceu então por trás de uma ramagem densa.
O administrador levantou-se da sua cadeira, a sua careca ao nível do queixo pontiagudo de Modesta e dos pescoços compridos de Kiribiti e Faustino. Reparou por um instante na cicatriz proeminente de Faustino, um traço robusto e vincado, ondulado. Disse aos locais que aguardassem por uns dias.
O soldado correu para o rio e encharcou-se. Sentiu um cheiro novo e no peito cresceu-lhe um vigor recuperado. O som aéreo dos pássaros já não o picava; o suor que a sua pele repelia já não lhe doía; o verde da ramagem que se confundia com o seu uniforme já não o irritava.
Passaram-se três ou quatro dias até que os locais de Mueda foram chamados à Secretaria da Administração. O administrador trazia resposta: era nenhuma. Das centenas de pessoas que ali se haviam congregado, vozes surgiam, doridas e robustas, a gritar independência. Modesta, Faustino e Kiribiti foram chamados a discutir pessoalmente com o administrador.
Sem saber, o soldado estava já sobre novo solo: a norte do Rovuma as terras da Tanzânia seguravam uma nova realidade muito diferente da de Moçambique. O esplendor da natureza fizera o soldado esquecer como chegara ali – havia-se perdido? escapado? alguém o enviara? Questões agora inúteis, para alguém rodeado pelo jardim do Éden.
Quando saíram do edifício, Kiribiti, Modesta e Faustino já não o eram. Que honra terem sido chacinados dentro da Administração, ao contrário das centenas de habitantes que agora caíam às portas do edifício, num quadro abstrato, furioso e vermelho, de cadáveres.
A centenas de quilómetros, o soldado divagava, por entre verdes lustrosos e terra espessa, elefantes e girafas, cantos exóticos. Não se arrependia de ter deixado Mueda, fosse por que razão fosse. A natureza acolhera-o como se sempre tivesse pertencido àquela terra.
Era dia 16 de junho de 1960. Dia último de muitos, dia primeiro para outros tantos.
Faustino, Kibiriti e Modesta entraram na sala da administração. A rugosidade das paredes amareladas confundia-se com a pele do administrador. Numa repressão de gestos indignados Modesta tentou expor o que os levava ali. O trabalho nos campos de algodão estava a desgastar a população de Mueda; só na semana passada seis mulheres tiveram de ser levadas à enfermaria após terem sido descobertas caídas sobre o campo.
O som tornava-se agora mais forte. O soldado sentiu uma força crescer-lhe nas entranhas, reparou no vigor que as suas pernas tomavam, quase desligadas da sua vontade. A velocidade e potência daquele som líquido lembravam-no das gaivotas em Belém e por uns segundos sentiu que ali, naquela terra primitiva e brava, havia pedaços da sua terra. O Rovuma apareceu então por trás de uma ramagem densa.
O administrador levantou-se da sua cadeira, a sua careca ao nível do queixo pontiagudo de Modesta e dos pescoços compridos de Kiribiti e Faustino. Reparou por um instante na cicatriz proeminente de Faustino, um traço robusto e vincado, ondulado. Disse aos locais que aguardassem por uns dias.
O soldado correu para o rio e encharcou-se. Sentiu um cheiro novo e no peito cresceu-lhe um vigor recuperado. O som aéreo dos pássaros já não o picava; o suor que a sua pele repelia já não lhe doía; o verde da ramagem que se confundia com o seu uniforme já não o irritava.
Passaram-se três ou quatro dias até que os locais de Mueda foram chamados à Secretaria da Administração. O administrador trazia resposta: era nenhuma. Das centenas de pessoas que ali se haviam congregado, vozes surgiam, doridas e robustas, a gritar independência. Modesta, Faustino e Kiribiti foram chamados a discutir pessoalmente com o administrador.
Sem saber, o soldado estava já sobre novo solo: a norte do Rovuma as terras da Tanzânia seguravam uma nova realidade muito diferente da de Moçambique. O esplendor da natureza fizera o soldado esquecer como chegara ali – havia-se perdido? escapado? alguém o enviara? Questões agora inúteis, para alguém rodeado pelo jardim do Éden.
Quando saíram do edifício, Kiribiti, Modesta e Faustino já não o eram. Que honra terem sido chacinados dentro da Administração, ao contrário das centenas de habitantes que agora caíam às portas do edifício, num quadro abstrato, furioso e vermelho, de cadáveres.
A centenas de quilómetros, o soldado divagava, por entre verdes lustrosos e terra espessa, elefantes e girafas, cantos exóticos. Não se arrependia de ter deixado Mueda, fosse por que razão fosse. A natureza acolhera-o como se sempre tivesse pertencido àquela terra.
Era dia 16 de junho de 1960. Dia último de muitos, dia primeiro para outros tantos.