"Hinos revolucionários... hoje" Marcco Roque de Freitas


"Ao longo das minhas estadias em Maputo entre 2016 e 2018 sempre que me perguntavam o que me tinha levado àquela cidade, respondia que queria estudar a música de Moçambique e como exemplo começava a cantar alguns dos hinos revolucionários, tipicamente “A Unidade” ou o “Hino da Mulher Moçambicana”. As reações foram muito diferentes de pessoa para pessoa, variando sobretudo consoante a idade dos ouvintes: houve quem ficasse indiferente, surpreendido ou visivelmente emocionado. Os meus amigos Stelio “Telynho” Semende, Camilo Miquidade e Marcelino dos Santos (herdou o nome do Presidente da Assembleia Popular), o primeiro na casa dos vinte e os restantes na casa dos trinta anos, reagiram com um misto de total desconhecimento e de indiferença. Telynho, contudo, mostrou-se particularmente surpreendido, chegando mesmo a publicar na sua página no Facebook o “Hino da Mulher Moçambicana”, no feriado alusivo ao dia 7 de Abril, com o seguinte texto: “Juro que não conhecia este Hino, e aproveitando agora, feliz dia a todas Mulheres”, apresentando deste modo o hino a uma geração que desconhecia a sua existência. Telynho nasceu em 1989, numa época em que os hinos começavam a ser vistos como uma coisa do passado. Nessa época, perante a queda do muro do Berlim e à margem das primeiras eleições multipartidárias em Moçambique, os “hinos” eram encarados como representações sonoras de uma política que, num período pós-samoriano, era assumida por muitos como tendo sido “falhada”; foi nessa época que eles deixaram de ser ensinados na escola e a sua prática esfumou-se das fábricas e bairros. Telynho chegou a conhecer a antiga bandeira nacional, o primeiro hino nacional na sua versão instrumental; contudo, nunca chegou a conhecer um único hino revolucionário.
As reações mais emotivas vieram de pessoas mais velhas, todas a partir dos cinquenta anos. Quando eu começava a cantar ficavam surpreendidas, alguns arregalavam os olhos, outros ficaram visivelmente emocionados, como se estivessem a ver uma fotografia com mais de quarenta anos. Durante um almoço na casa do meu amigo José Miguel Nicolau, na companhia de dois ex-presos políticos e embaixadores de Moçambique – Fernando Fazenda e Amós Mahanjane – ouvimos e cantamos vários hinos, intercalados com explicações detalhadas das suas letras e, em muitos casos, de informações relacionadas com os seus compositores. Nesse mesmo almoço tive a oportunidade de ouvir, em primeira mão, alguns dos hinos que foram por eles compostos na prisão da Machava.
Contudo, as duas reações mais emotivas vieram do músico José Mucavele e da ex-secretária da Organização da Mulher Moçambicana (OMM), Salomé Moiane. Numa viagem à Catembe, bastou eu cantar o incipit de “A Unidade” para que Mucavele continuasse a cantar. Entre versos olhou para mim e afirmou: “Há tantos anos que eu não canto isto, nunca pensei que fosse ouvir um português a cantar essas canções”. Os meus interlocutores ficavam mais confusos quando eu explicava que, mesmo sendo português, não tinha laços afetivos nem familiares com Moçambique. Pelo contrário, fazia questão de explicar que eu estava a criá-los naquele momento, com eles. Contudo, mal imaginava que a aprendizagem daquele repertório serviu, em momentos chave, para legitimar o meu trabalho e promover uma maior aproximação com os meus informantes.
Na minha primeira visita à casa da ex-secretaria geral da OMM – Salomé Moiane –também cantei o “Hino da Mulher Moçambicana”. Logo ao início, Moiane arregalou os olhos, ficou em silêncio e seguidamente exclamou: “mas… você conhece as nossas coisas?”. A partir desse momento a sua voz mudou: não só ficou muito mais doce como passou a chamar-me de “meu filho”. Na minha segunda visita, dois dias depois, ofereci um Compact Disc com as digitalizações dos hinos revolucionários. Moiane ficou comovida ao ouvir as vozes de outros tempos, mas sem nunca perder a compostura. Depois de uma longa conversa, sempre acompanhada pelo som de fundo dos hinos, tiramos uma fotografia e iniciei as minhas despedidas. Devido a alguns problemas que têm condicionado a sua mobilidade, Moiane despediu-se a partir do seu sofá, não sem antes me fazer um pedido: “Não desligue, meu filho, vou ficar aqui sentada a ouvir”. Enquanto eu saía silenciosamente, olhei momentaneamente para trás e lá estava Salomé Moiane de olhos fechados, a ouvir a voz dos seus companheiros de outra época e, muito possivelmente, a relembrar os tempos em que a expectativa e esperança de um novo mundo a todos contagiava. Uma viagem pelo tempo através da música".
4.1