"Um de nós" Marco Roque de Freitas

12 de Abril de 2018, Airbus 343, TP284 “Venceslau de Moraes”, Maputo-Lisboa


"A minha última viagem a Maputo, que agora se finaliza, teve como principal objetivo a clarificação de dúvidas junto dos meus informantes. Para o efeito, trouxe comigo cerca de 360 páginas com a primeira versão dos oito capítulos da tese. Foi para mim muito enriquecedor dar algo de volta aos meus informantes; um processo que não se cingiu ao texto por mim produzido. Nada me alegrou mais do que facultar aos meus informantes as digitalizações dos seus discos. Foi com especial satisfação que eu entreguei ao produtor Domingos Macamo as digitalizações de LP’s por ele produzidos nos primeiros anos após a independência e que, devido à falta de condições materiais e tecnológicas (designadamente um gira-discos), ele não tinha a oportunidade de ouvir: “posso estar triste, ou doente, mas ao ouvir estas coisas até me sinto melhor”, disse-me.
Esta experiência fez-me refletir não só sobre o papel do investigador na sociedade, mas também sobre o modo como se foi modificando, ao longo dos anos, a minha perceção e relação com Moçambique. Ao escrever uma tese sobre identidades nacionais, seria natural que eu repensasse e problematizasse a minha própria “identidade”, sobretudo no que se reporta à relação entre o Moçambique e Portugal, o país onde nasci. Foram muitas as situações em que a delimitação entre o “nós” e “eles” era declarada, desconstruída e/ou posta em causa. Apesar de eu ter nascido cerca de 10 anos após as independências, foi muito constrangedor ouvir as descrições de abusos protelados por esse grupo de pessoas indiscriminadamente referidas como “os portugueses”, do mesmo modo que fiquei orgulhoso sempre que ouvia outras histórias que falavam de interajuda e compaixão por parte desses mesmos “portugueses”. Contudo, a última coisa que eu queria é que os meus informantes me vissem como “o português”; mas logo percebi que esse era um facto demasiado importante para ser simplesmente ignorado. No momento em que Sheik Cássimo David Dafine me recebeu com o toque do hino nacional português na sua gaita de beiços, senti-me por um lado muito envergonhado, porque sei em que circunstâncias ele foi obrigado a aprende-lo e a tocá-lo há mais de 50 anos (no contexto da mocidade portuguesa) enquanto por outro fiquei genuinamente comovido com o gesto. Afinal, ele só me queria agradar, e não fazia a mínima ideia de que eu não valorizo esse tipo de representações “nacionais”. Contudo, esse foi um dos momentos em que a minha identidade enquanto “português” foi evidenciada. Para contrapor, pedi ao Sheik para que me tocasse os hinos de Moçambique, o antigo e o atual.
Considero pertinente narrar um outro momento ocorrido durante a minha segunda viagem a Maputo e que teve como protagonista o meu amigo taxista Marcelino dos Santos Júnior. Um dia Marcelino foi-me buscar na zona de Sommerschield e, para meu espanto, trazia consigo a sua esposa. Nesse momento soube que ela estava grávida e que as águas tinham acabado de “rebentar”. Estavam, portanto, a caminho do hospital. De modo a “quebrar o gelo” eu disse em tom de brincadeira que “se for menino chamar-se-á Marco”. No dia seguinte chegou a boa-nova: tinha nascido um menino saudável de seu nome Marco África dos Santos Massinga. Para minha surpresa Marcelino levou a sério o meu pedido e acabei por ganhar um “xará”. Na véspera de viajar para Lisboa, Marcelino levou-me a visitar uma casa de familiares localizada nos subúrbios da cidade, onde fiquei a conhecer a sua família – a sua mulher ainda em recobro, e os seus três meninos: Júnior, Vítor e o recém-nascido Marquinho. No dia seguinte, enquanto me levava para o aeroporto, Marcelino disse-me que a sua esposa tinha ficado aborrecida por não ter sido avisada com antecedência da minha visita: “trouxeste para cá um “branquela” e nem sequer avisaste para eu arrumar a casa” – disse ela, ao que Marcelino respondeu: “este “branquela” não é como os outros, este não precisa de cerimónias, ele é um de nós”. Fiquei sem palavras e visivelmente emocionado quando ele mo contou. Pela primeira vez alguém me acolhia como sendo “um deles” ... seja lá a que tipo de pertença ele se referia. Entretanto já passou um ano, e nesta última temporada em Maputo voltei a estar com a família de Marcelino. O pequeno Marco cresceu, e nestes dias celebra o seu primeiro aniversário. Enquanto o segurava ao colo, pensei nas várias coisas boas que me aconteceram em Moçambique.
Quase dois anos depois da minha primeira viagem, a minha relação com Moçambique ganhou uma intensidade quase indiscritível. A cada parágrafo que escrevo e a cada notícia menos boa que leio sinto uma preocupação genuína em relação aos “meus” moçambicanos. Pressinto que esta relação já não tem retorno possível: aconteça o que acontecer, eu estarei inevitavelmente ligado a Moçambique – não só através das linhas de que este trabalho possa vir a acrescentar ao meu currículo, mas sobretudo através das experiências por mim vivenciadas e pelos laços que por lá criei. Naquele primeiro “Dia da Paz” Moçambique ainda era o “outro” que eu estava disposto a descobrir. Hoje, enquanto escrevo estas palavras em pleno voo de regresso a Portugal, sinto que Moçambique já faz parte de mim. Posso afirmar que me sinto moçambicano. Não existe nenhum documento que o ateste formalmente, mas eu sei que sou. Existe uma extensa bibliografia académica sobre identidades, todavia existem coisas que não vêm escritas nos livros. Estas são demasiado reais e pessoais para serem reproduzidas, numa primeira instância, com a nossa linguagem. Tudo se torna demasiado real quando deixamos os livros e os arquivos poeirentos e começamos a interagir com outras pessoas, quando rimos e choramos juntos, quando no processo nos tornamos mais humanos. No fim do dia é isso que realmente importa".