(Mais uma) manhã na Guerra do Ultramar SPC

Novembro de 1964

Quando abraçou ternamente a sua mulher, não sabia que o fazia pela última vez, ou talvez tivesse feito tudo para prolongar um pouco mais o gesto, para abrandar o momento, talvez até congelá-lo no tempo, para que durasse para todo o sempre. Talvez tivesse dito aos filhos algo mais que "Vá, juízo! Portem-se bem e respeitem a vossa mãe. Não tarda estou de volta." Talvez se tivesse detido mais um pouco para apreciar o quão belas e valiosas são estas coisas pequenas e para inalar o aroma saboroso da comida acabada de fazer, do lume a crepitar, do chão, das paredes, do conforto do seu lar. As despedidas têm destas coisas...muitas vezes, são-no sem avisar.

Nesse dia, João despedia-se da família e partia para África...sem saber que não iria mais voltar.

Aquela era uma guerra que ele não tinha pedido. Ele, à semelhança de tantos dos seus camaradas, não a queria. Era o seu Estado que a queria.
De um lado, a resiliência de um povo que lutava com todas as forças para conquistar a sua libertação e independência face aos seus colonizadores. Do outro, um Estado nacionalista, teimoso em conceder essa emancipação às suas colónias. De ambos os lados, um banho de sangue. E nesse sangue, nada mais que resquícios de actos violentos e de morte em que - à semelhança de toda a guerra - ninguém nunca sai verdadeiramente vitorioso.

Preferia, sem lugar para dúvidas, ficar junto da sua família, daqueles que mais amava, olhar para os seus rostos corados, sorrisos ternos e olhos vivos de emoção dia após dia...que acordar, manhã após manhã, e nada mais ver que os rostos lívidos dos moços que tombavam no campo de batalha, num cenário inóspito de destruição. Por mais amor que nutrisse também pela sua Pátria, aquilo não era nada. Aquilo era a mais nua e crua visão do Inferno. Aquilo não fazia sentido. A escolha entre a sua família e a guerra era fácil...isto se ele tivesse tido direito a fazer uma escolha.

Numa manhã como tantas outras, João e alguns dos seus camaradas patrulhavam o terreno, fazendo nada mais que uma vigia de rotina que fazia parte das tarefas quotidianas e do bê-à-bá dos soldados. Estavam no Norte de Moçambique, a desbravar a região de Xilama, montados num tanque de grande envergadura, cujo rosnar pesado e retumbante do motor era o único ruído que quebrava o silêncio instalado...calmo, sereno...quase demasiado sereno, até.

É impressionante a fragilidade da vida. É impressionante a sua efemeridade. É impressionante como basta um passo em falso, um engano, um azar (se é que existem realmente "azares"), um acaso fortuito do destino...e, num ápice, tudo termina.

Era melhor que o tanque onde seguiam João e os seus camaradas nunca devesse ter saído da base para patrulhar o terreno nessa manhã. Era melhor que os ingénuos soldados nunca devessem ter seguido aquele trilho. Era melhor que o pesado veículo não tivesse passado precisamente onde estava uma mina...e era tão melhor para João e para os seus camaradas que essa mina não tivesse explodido.

Era melhor que os milhares de jovens soldados que se perderam na Guerra do Ultramar nunca se tivessem perdido. Melhor ainda, era que a guerra em África nunca tivesse acontecido.